Vingança: um pernil que se come quente "Cunhambebe tinha diante de si um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-a frente à minha boca e perguntou se eu também queria comer. Respondi: 'Um animal irracional não come um outro igual a si. Um homem deveria comer outro homem?' Ele mordeu e disse "Jauára ichê. Sou uma onça. Está gostoso" Então afastei-me. O arrepiante relato em primeira pessoa acima vem, obvimente, do período colonial. Foi composto pelo mercenario alemão Hans Staden (1525-1579), sujeito que veio para o Novo Mundo em busca de aventura e se colocou a serviço dos portugueses como artilheiro de um forte em Bertioga, no atual litoral paulista. Capturado pelos mais aguerridos inimigos de Portugal na região, os Tupinambá (também conhecidos como Tamoio na época) Staden passou vários meses em aldeias desse grupo de fala tupi, sob constante ameaça de ser devorado nos festins antropofágicos que funcionavam como celebração ritual da vingança guerreira entre os membros da etnia. Graças à sua lábia e sorte, Staden conseguiu ser liberado pelos Tupinambá e voltou para a Europa. A narrativa do alemão, publicada originalmente em sua terra natal, corrobora o que dizem outros cronistas do século XVI, sejam eles portugueses franceses ou espanhóis. Com base nesses textos e em outros dados históricos e etnográficos, fica clara a importância e talvez a centralidade do combate e dos ciclos aparentemente intermináveis de vingança para as sociedades Tupi. O papel exato dessa ideologia belicosa e literalmente devoradora na expansão de tais grupos pela América do Sul ainda é uma questão em aberto, mas o fato é que, ao menos no caso de alguns dos povos que falam idiomas tupi, muitos indicios apontam para uma capacidade de conquistar territórios extremamente significativa ao longo da pré-história brasileira. A maioria das pesquisas mais recentes concorda ao estimar uma idade de uns 5 mil anos para o chamado tronco linguistico tupi como um todo. Quanto ao local de origem desses idiomas, as subdivisões dentro do grupo são uma pista importante. Os estudiosos classificam as linguas tupi em nada menos que dez ramos ou subfamilias diferentes. Cinco dessas subfamilias, faladas por grupos como os Cinta-Larga e os Tupari, possuem uma distribuição geográfica bastante restrita: só podem ser encontradas na atual Rondônia (e num pedacinho adjacente de Mato Grosso). Outros quatro ramos tupi, aos quais pertencem as línguas faladas por povos como os Munduruku e os Juruna, estão bem mais espalhados, podendo ser encontrados em regiões tão diferentes quanto o Alto Xingu e os arredores de Santarém mas sempre dentro da Amazônia. Já o último e mais amplamente distribuido ramo do grupo, o dos idiomas tupi-guarani, parece ter passado pelo espetáculo do crescimento em algum momento (relativamente) recente do passado. No século XVI, podia ser encontrado em quase todo o litoral brasileiro, do Maranhão ao Rio Grande do Sul; na Argentina, no Uruguai, no Pa- raguai, na Bolivia e no Peru, até as vizinhanças dos Andes; e ainda marcava presença em diversas regiões da Amazônia brasileira. Finalmente os idiomas da subfamília Tupi-Guarani costumam ser parecidos entre si (calcula-se que compartilhem cerca de 70% dos cognatos do vocabulário básico, aquele das listas de Swa desh) e tem, de longe, a distribuição mais ampla. Como a diferenciação linguística costuma ter uma relação estreita com a distância temporal e espacial - ou seja, há quanto tempo dois idiomas se separaram, e a que distância estão um do outro - é lógico inferir que os grupos Tupi-Guarani foram os que se expandiram há menos tempo e com maior velocidade. É mais ou menos o caso do inglês falado nos Estados Unidos relativamente homogéneo numa área extensa deste lado do Atlântico, enquanto, do outro lado do mar, na Europa, regiões muito menores abrigam uma grande variedade de línguas aparentadas a ele, mas bem diferentes (alemão, holandês, idiomas escandinavos etc.). A questão encrespa um pouco quando se tenta estimar com mais precisão quando e como essa expansão relativamente veloz dos Tupi-Guarani aconteceu. Se o lar original desses grupos era mesmo o sudoeste da Amazônia (conforme indicam os dados de Rondônia), eles ocupavam uma posição bastante boa para realizar o que alguns estudiosos apelidaram de "movimento de pinça Tupi-Guarani” A analogia aqui, talvez não por acaso, é com a estratégia militar. "Movimento de pinça” é o que um general ousado faz quando divide suas forças em duas partes, cada uma das quais responsável por atacar um dos flancos do inimigo (e assim esmaga-la como alguém que agarra uma mosca com uma pinça). A partir de Rondônia, seria possível para os grupos Tupi-Guarani descer o rio Madeira até o curso principal do Amazonas, então, bastaria ir até a foz do maior rio do mundo para atingir o Atlântico e descer a costa rumo ao Nordeste e ao Sudeste - esse seria um dos "braços da pinça. Por outro lado, outro grande rio do sudoeste amazônico, o Guaporé, entre Rondônia e a Bolívia, está relativamente próximo das áreas banhadas pelo rio Paraguai, o qual, por sua vez, é parte da bacia do Paraná, que liga o Pantanal ao interior do Sul e do Sudeste e também conduz à Argentina, ao Uruguai e, claro, ao Paraguai, formando o outro braço da pinça. Portanto, teríamos dois grandes movimentos: um desencadeado pelos grupos que dariam origem aos Tupi propriamente ditos - primeiro amazónico e depois litorâneo ¬- e outro dos povos que acabariam sendo classificados como Guarani nos tempos atuais, pelo interior do continente e depois rumo ao Cone Sul. Após contornar boa parte do mapa da América do Sul por caminhos opostos, as duas vertentes dos povos Tupi-Guarani acabariam se encontrando mais ou menos onde hoje é o litoral sul do estado de São Paulo, nos arredores de Cananeia. Na época da invasão portuguesa, era por ali que ficava a divisa entre os Tupiniquim (como o nome sugere, uma etnia Tupi) e os chamados Carijó, um dos braços dos Guarani. Os dois grupos, aliás, não iam nem um pouco com a cara um do outro. Essas jornadas épicas podem ter começado para valer no começo da Era Cristã, uns dois mil anos atrás, embora algumas descobertas arqueológicas recentes indiquem datas ainda mais recuadas. Num trabalho publicado em 2008 no periódico Anais da Academia Brasileira de Ciências, uma equipe do Museu Nacional da UFRJ, capitaneada por Rita Scheel-Ybert, relatou a datação de amostras de carvão de fogueira associadas a uma urna funerária típica dos Tupi-Guarani (ou melhor, da tradição cerâmica Tupiguarani, sim, eu sei que é uma confusão dos diabos, mas os especialistas costumam usar a grafia com hífen para falar dos povos e a sem hífen para se referir aos potes) encontrada na região de Araruama, no Rio de Janeiro. As idades? Entre 2.900 e 2.600 anos antes do presente segundo o carbono-14, ou mais de três mil anos "de calendário" atrás quando as datações são calibradas pelos métodos consagrados. Não preciso dizer que o Rio de Janeiro fica muito, muito longe da Amazônia, e que as datações parecem indicar uma expansão-relâmpago, e muito antiga, dos grupos Tupi pela costa brasileira. Tal cenário pode ter acontecido de fato, mas ainda precisamos de mais peças no quebra cabeça With Dream Machine AI

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